A Ode ao Homem, de Sófocles (Antígone, versos 332-375)
Um elogio às potências da humanidade?
Oi, pessoal,
Sigo reciclando textos antigos meus (que ainda não me envergonham) e resolvi mostrar para vocês esta minha tradução de um canto coral da Antígone, de Sófocles, a famosa “Ode ao Homem”.
Traduzi este texto para a Revista Sepé, revista quadrimestral de literatura editada e coordenada heroicamente pelo Lucio Carvalho, autor rio-grandense premiado e entusiasta das letras no estado.
Na época, ápice da pandemia, Lucio me pediu um poema e foi esta tradução que mandei. A chamada “Ode ao Homem”, de Sófocles, estava em minha cabeça justamente por causa da peste que então nos assolava. Sem perspectivas de vacina a curto prazo, com a morte grassando por toda a parte, eu me lembrava do célebre verso sofocliano: o homem só não pode escapar da morte, mas “de doenças invencíveis/concebe a fuga”.
Na ocasião em que foi publicada, a tradução veio sem nenhum texto de apresentação. Lucio me diria depois que foi muito difícil encontrar um lugarzinho para Sófocles na Sepé, uma revista sobretudo voltada à poesia contemporânea. Só que diante de tudo o que estava acontecendo naquele fatídico ano de 2020, eu estava achando esses versos de Sófocles mais contemporâneos do que nunca.
Lida destacada do contexto da peça, parece um elogio à engenhosidade e às potências do ser humano. O Coro descreve, passo a passo, como o ser humano dominou a natureza — sulcando o mar com navios e a terra com seu arado; inventando a caça, a pesca e domesticando animais. Depois, descreve como ele criou as artes da linguagem e do intelecto. No final das contas, tudo o ser humano pode alcançar, exceto a imortalidade. O canto se encerra descrevendo aqueles que fazem mau uso desta engenhosidade, gente que o coro quer bem longe de sua casa. Lendo assim, parece de fato uma celebração do humanismo, de que por mais difíceis que sejam as circunstâncias, a humanidade sempre consegue dar o seu jeito.
A Antígone de Sófocles conta que os dois filhos de Édipo, herdeiros ao trono de Tebas, Polinices e Etéocles, entraram em conflito. Etéocles desejava manter-se no poder, sem dividi-lo com o irmão. Polinices então move guerra contra ele, mas ambos morrem lutando um contra o outro.
Creonte, tio deles, assume o poder e proíbe que Polinices seja sepultado com as devidas honras, condenado como traidor de Tebas. É aí que surge Antígone, que luta para honrar o irmão na morte.
O canto que lemos vem logo depois que o coro toma conhecimento da proibição de Creonte e de que Antígone praticara, secretamente, ritos fúnebres ao irmão.
Dentro deste contexto, a ode parece um tanto mais ambígua.
A palavra-chave do canto, que define o ser humano, é deinos, que admite tanto o sentido de prodigioso, maravilhoso, extraordinário, mas também de terrível, estranho (e que, momentos antes, na mesma peça, havia aparecido em sentido negativo).
Muitas das artes que o coro parece louvar também admitem mais de uma interpretação. A construção de navios, por exemplo, nem sempre é vista em outros textos da Antiguidade como algo bom, antes assinala o distanciamento do homem de uma Era de Ouro em que ele podia viver sem dificuldades, em direção a uma era em que ele precisa lutar e lançar-se ao mar, seja por ganância seja para sua própria sobrevivência. E ao fim, não importa quão engenhoso seja o ser humano, pois aquilo que o marca e define é a sua fragilidade mortal, a sua finitude.
Talvez, afinal, a Ode ao Homem seja menos um louvor às potencialidades da humanidade e mais uma exploração das potências da linguagem do teatro grego, que, se permitindo dúplice e assumindo mais de uma direção, nos faz pensar também nas múltiplas capacidades do homem — para o bem ou para o mal.
(Sófocles, Antígone, versos 332-375)
Muitos prodígios e terrores há;
nenhum maior que o ser humano.
Ele atravessa o mar cinzento
junto a ventos invernais,
ele vaga e vence rugentes
ondas que o cercam e exaure
a mais suprema deusa,
a Terra imortal e incansável,
ano a ano lavrando-a vai
com o arado e seu cavalo.A raça de aves lépidas
o rebanho de feras
as criaturas marinhas
ele enlaça e leva
na rede que urdiu,
homem perspicaz;
vence com artes a rude
fera dos montes e põe
o jugo no pescoço
do corcel crinudo
e do touro agreste;Aprendeu a língua, sutis
pensamentos e modos civis;
a abrigar-se do frio inóspito
e das tormentas lancinantes;
apurado, nunca em apuros
no porvir: só da morte
não saberá fugir;
de doenças invencíveis
concebe a fuga.Seu engenho e arte
superando a esperança
leva-o ora ao mal, ora ao bem;
quando honra costumes da Terra
e as Leis que jura aos deuses
se eleva na pólis; sem pólis
quando se atreve a cometer o mal:
não venha ao meu lar
nem partilhe comigo seu pensar
quem age assim!
Belíssimo!♡
Belíssimo! Obrigada por compartilhar!