Prezado leitor,
não sei se já te contei, mas estou traduzindo uma obra chamada Pós-Homéricas, que conta o que acontece na Guerra de Troia depois do fim da Ilíada (a Ilíada não conta toda a Guerra de Troia. Se foi um spoiler, desculpe). Esta obra é atribuída a um poeta chamado Quinto de Esmirna, do qual não sabemos quase nada — nem se seu nome era Quinto, nem se ele viveu em Esmirna, cidade na região da Ásia Menor, e muito menos em que época (alguns dizem que foi no século III da nossa era).
Mas o fato é que ao traduzi-lo, tenho aproveitado para pensar muito nos meus métodos de tradução, tentando sistematizar e entender muito do que é intuitivo na minha prática. Se você tiver interesse, você pode acompanhar essa jornada de autodescoberta aqui.
E ao traduzir os versinhos abaixo me ocorreu uma coisa.
Neles, encontramos Pentesileia, a rainha amazona, que já no primeiro canto do poema se mostra uma substituta do falecido Heitor na guerra, a nova rival de Aquiles, o maior guerreiro grego.
Em certo ponto, o poeta a compara à tempestade que acomete o mar durante o solstício do inverno ("quando a força sol entra em Capricórnio”). Ela é, então, "como/igual à tempestade sombria" (láilapi kyaneí enalínkion). Mas eu gostei, achei bonito, traduzir assim:
Um dos troianos exultou, máximo júbilo,
ao ver Pentesileia correndo em meio às tropas,
ícone da sombria tempestade que em alto mar
desvaira, quando a força do sol entra em Capricórnio
[Καί τις ἐνὶ Τρώεσσιν ἀγάσσατο μακρὰ γεγηθώς,
ὡς ἴδε Πενθεσίλειαν ἀνὰ στρατὸν ἀίσσουσαν
λαίλαπι κυανέῃ ἐναλίγκιον, ἥ τ' ἐνὶ πόντῳ
μαίνεθ', ὅτ' Αἰγοκερῆι συνέρχεται ἠελίου ἴς·]
(Pós-Homéricas, 1.353-356)
O que me faz pensar que traduzir é, com certeza, uma atividade regida pelo deus Hermes. Por quê?
Hermes é o deus dos caminhos, o deus das trocas, sempre levando algo do ponto A para o ponto B, é o deus que detém a "infalível arma da linguagem", como diz um Hino Órfico, é o deus dos intérpretes -- os hermeneutas -- e tradução é um pouco tudo isso, né?
Então, ao traduzir, é bom sempre ter o altar bem ornado para esse deus (e também para as Musas, já que a tradução tem que soar bem, afinal, e ainda para Atena, porque na tradução é necessário desenvolver aquela inteligência chamada Métis, que os gregos gostavam, e que nos leva a procurar saídas para os desafios mais impossíveis).
Mas devo a Hermes a tradução do trecho abaixo também porque o deus Hermes às vezes é um pouco ladrão, e o tradutor não se furta de furtar as boas soluções poéticas dos seus colegas.
Algumas entram no cânone tradutório das Letras Clássicas, como todos aqueles salamaleques com adjetivos compostos -- multiastucioso Odisseu, o multirresonante mar, etc — mas a imagem que eu quis, hã, homenagear aqui vem da tradução da Ilíada feita por Haroldo de Campos, no início dos anos 2000. Numa imagem belíssima do Canto I, Homero nos fala da chegada de Apolo ao campo de batalha troiano. O poeta grego diz que Apolo "chega como a noite", "igual à noite", em traduções, digamos assim, mais prosaicas.
Mas não Haroldo.
Para Haroldo, o deus furioso é o "ícone da noite”. E vejam que bonito: ele resgata algo do étimo da palavra grega, que diz nýkti eoikós. Perceberam como ele aproximou som e sentido? Eu me lembrei dessa passagem e achei que cairia como muito bem aqui: Pentesileia é “o ícone da tempestade sombria”.
Enfim, com tudo isso quero dizer quão importante me parece reconhecer que existe também uma tradição de traduções, que penetra de modo insuspeito em nossas leituras — infelizmente, vemos muitos tradutores em evidência que vão colher soluções em campo alheio mas não dão os devidos créditos e nem mesmo parecem reconhecer esta tradição.
A tradução de Haroldo de Campos foi publicada pela Editora Benvirá/Arx, e nesses tempos em que temos traduções da Ilíada para dar e vender, uma nova edição desta, acompanhada de estudos, não ficaria nada mal, já que ainda hoje ela excele em qualidade poética e foi um marco para os Estudos Clássicos brasileiros.