Olá, pessoal,
Resolvi publicar neste espaço alguns textos antigos que (ainda) gosto. Este, sobre Safo, foi publicado na seção “Poesia Traduzida” da Revista Parêntese 17, de maio de 2020. A Parêntese é um caderno cultural do Jornal Matinal News, de Porto Alegre.
O texto apresenta Safo a novos leitores e traduções de seus poemas mais famosos. São poemas muito traduzidos em língua portuguesa: já passaram por eles grandes helenistas e poetas, mais do que seria possível elencar neste breve espaço (e sob pena grave de esquecer alguém). Para quem quer conhecer a poeta, então, aí vai uma amostra. Para quem quiser conhecer mais, recomendo a leitura de Hino a Afrodite e Outros Poemas (Editora Hedra, 2021), escrito por Giuliana Ragusa, a maior especialista brasileira na poesia de Safo de Lesbos.
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Sobre Safo
Safo poetou entre o fim do século VII e início do VI a.C. Nasceu na ilha de Lesbos e viveu em Mitilene, sua principal cidade. Dizem muitas coisas sobre ela: que foi uma professora que preparava meninas para o casamento; uma sacerdotisa de Afrodite; ou ainda uma mestra das danças corais. Nunca saberemos. Seus versos de amor a meninas tornaram-se a parte mais conhecida de sua poesia.
O tempo a tornou célebre: Platão a considerou a décima Musa. Na Biblioteca de Alexandria, no séc. II a.C., foi canonizada por estudiosos como um dos nove poetas gregos mais importantes – todo aquele que queria ser poeta deveria lê-la.
Em Roma, Catulo e Horácio emularam seu estilo. Para este último, sua poesia era sagrada. Hoje, seu nome e a ilha que habitou designam termos da sexualidade humana, traduções a resgatam e relíquias de sua obra poética insistem em ressurgir nas areias do Egito. Safo é imortal.
A lírica de Safo é extremamente melodiosa – os gregos viam em seus ritmos e assonâncias um poder sobrenatural, próprio dos encantamentos. É permeada pelo desejo, pela lembrança, pelos embates de amor e pela dor de sua perda. Mas o que nos restou é fragmentado, lacunar, e mesmo a música que a acompanhava originalmente se perdeu irremediavelmente.
Todos os poemas escolhidos para esta breve seleta narram a dor do desejo irrealizável. Ora essa dor assume forma divina, emoldurada num chamado a Afrodite (fragmento 1); ora Safo a explica recorrendo ao mundo do mito (fragmento 16); ora é o relato de uma amante serena, que recorda, com coração grato, os momentos felizes que viveu com a amada (fragmento 94).
Mas chamo a atenção especialmente para o primeiro fragmento abaixo (31): não é exagero dizer que ele inaugurou a lírica ocidental. O poema encanta pelos seus oxímoros: Safo descreve, com extremo autocontrole, os sintomas de seu próprio descontrole amoroso. Este descontrole faz seu próprio corpo e seus sentidos colapsarem e serem alvo de forças tão contraditórias como o fogo e a água.
Sua língua se rompe, mas seus versos são, e continuam, muito eloquentes.
Fragmento 31: Aquele que é igual aos deuses (trad. Rafael Brunhara)
Parece-me aquele igual aos deuses ser, o homem que em tua frente está sentado e de perto doce fa- -lar te escuta atento e sorrir com desejo — isso tudo eu juro faz meu coração no peito esvoaçar pois te olho e tão logo falar eu já não posso, mas rompe-se a língua e leve logo sob a pele lavra um fogo; com meus olhos nada vejo fremem meus ouvidos água de mim se esvai, tremor toma-me toda; mais verde que relva estou e bem perto de morrer pareço eu mesma. Mas tudo se deve ousar …
Fragmento 1: O Hino a Afrodite (trad. Rafael Brunhara)
Afrodite imortal em flóreo véu fulgente, filha de Zeus, tecelã de enganos, suplico: nem com ânsias nem com dores domes senhora, o meu coração, mas vem aqui, se alguma vez antes ouvindo minha voz de longe me atendeste e a casa do pai deixando áurea vieste carruagem atrelada: belos te trouxeram ágeis pardais sobre a terra negra, num denso turbilhão de asas cruzando o ar, e logo chegaram. E tu, venturosa, sorrindo em teu rosto imortal perguntaste o que sofri de novo, porque te invoco, e o que mais quero que aconteça em meu coração louco. “Quem vou convencer de novo ao teu amor? Quem, Safo, te faz esta injustiça? Pois bem; se ela foge, logo te perseguirá; se não aceita os presentes, em troca os dará; se não te ama, logo te amará, mesmo que não queira.” Vem a mim, vem agora, duras angústias desfaz; e o que cumprir meu coração anela, cumpre! Vem, tu mesma, e me ampara nesta luta.
Fragmento 16: Poema para Anactória (trad. Rafael Brunhara)
Tropas de corcéis, ou infantarias, ou naus: dizem ser sobre a terra negra o que há de mais belo. Mas o que eu digo: é aquilo que se ama. Todo fácil fazê-lo compreensível a todos: quem de longe superou a humana gente em beleza, Helena, ao ótimo marido deixou, e foi p’ra Troia navegando. Até da filha e dos caros pais de todo se esqueceu; mesmo prudente, a Cípris desviou-a. Ela o vosso inflexível pensamento doma de leve, enlanguesce a mente, e agora faz-me lembrar de Anactória, que não está aqui: queria ver seu apaixonante andar e o cintilar brilhante de seu rosto e não carros dos Lídios e guerreiros em armas e armaduras.
Fragmento 94: O Adeus (trad. Rafael Brunhara)
Quero morrer, não minto. Chorando ela me deixava e aos prantos me disse “Ai, que tristeza a nossa, Safo!, juro, não quero deixar-te”. E esta resposta lhe dei: “Adeus! Vai, mas tem-me na lembrança — sabes que cuidei de ti. Se não, eu quero lembrar-te… … que alegrias vivemos: com guirlandas de violetas rosas e açafrão …ficaste ao meu lado e tantas coroas trancei em teu colo macio, feitas de flores… com o flóreo… perfume te ungiste … como rainha e em leito macio tenra… teu desejo saciavas E não havia um só templo, um só … bosque… onde juntas não estivéssemos…. …a dança … o som…
Que gostoso poder ler as suas traduções.
O Fragmento 16 é o meu preferido e é insuperável, professor. Na sua tradução ficou ainda mais especial!