Uma Ilíada em prosa

Outro dia me dei conta de que temos hoje à disposição nas livrarias muitas traduções da Ilíada de Homero. Creio que sejam sete, que elenco em ordem cronológica: Odorico Mendes, Carlos Alberto Nunes, Haroldo de Campos, Frederico Lourenço, Christian Werner, Trajano Vieira e Leonardo Antunes. Todas elas são traduções em verso, que tentam, em maior ou menor grau, reproduzir aquilo que creem ser a poesia do original.
Eu me pergunto, considerando hoje a multiplicidade de estilos e modos de se fazer e entender poesia, como seria uma tradução de Homero em prosa. O quanto ela se aproximaria do que foi a epopeia antiga? Uma tradução assim, tal qual nas traduções em verso, teria que respeitar e verter os jogos de palavra do original, algo de sua sonoridade. No entanto necessariamente ela imprimiria um andamento diferente do que vemos nas traduções hoje disponíveis, talvez contínuo e marcado por certa legibilidade mais fluída, que não ficaria nada mal em um poema de 15 mil versos. Na fatura final, ela ficaria mais próxima de um romance, mas será que estaria, ainda assim, tão distante do poema de Homero?
Não quero dizer que não há traduções em prosa da Ilíada. Mas diferentemente da Odisseia, que tem uma tradução que é reeditada até hoje, a de Jaime Bruna (e que é muito boa para o tão pouco que se fala dela), as da Ilíada são antigas: a do Pe. Manuel Dias Corrêa, de 1945 (que em breve será reeditada pela Editora Madamu), e a de Octávio Mendes Cajado, da década de 60. Há também a tradução de Fernando C. de Araújo Gomes, que saiu na Coleção Clássicos da Universidade, da Ediouro (agradeço à Camila Zanon por me lembrar dela). Todas elas, contudo, estão fora de circulação.
São dúvidas que eu não sei responder, mas de todo o modo consigo ver o lugar para uma tradução assim hoje em dia, preenchendo uma lacuna no já vasto cenário de traduções deste poema. Mas a questão tem lá sua polêmica em nosso meio acadêmico, com um mantra de não verter poesia em prosa, como coisa de “gente que não gosta de poesia” ou como um atentado a ela. Mas vale pensar se o poético estaria só no verso. Fica aqui um exercício, traduzindo os primeiros versos do Canto I (1-34), digam lá o que acham:
CANTO 1
A Cólera
Canta a cólera, Deusa, de Aquiles, o filho de Peleu, cólera catastrófica que impôs milhares de dores aos Aqueus, precipitou no Hades muitas almas fortes de heróis, e deu os próprios corpos deles como presa para os cães e para todas as aves. Cumpria-se a vontade de Zeus! Canta a partir do momento em que primeiro se afastaram discordantes o Atrida, senhor de guerreiros, e o divino Aquiles.
Qual, entre os Deuses, foi o que os concitou a lutar em discórdia?
- O filho de Leto e de Zeus. Irado contra o rei, instigou pelo exército uma peste cruel, as tropas eram dizimadas porque o Atrida não honrara Crises, o sacerdote.
Crises chegara aos navios velozes dos Aqueus para libertar a sua filha, trazendo consigo um resgate incontável. Nas mãos, tinha as insígnias de Apolo, o que fere de longe, entrelaçadas no ápice do dourado cetro, e suplicava a todos os Aqueus, mas especialmente aos dois Atridas, que lideravam as tropas:
“Atridas e demais Aqueus de belas grevas! Queiram os Deuses, habitantes do Olimpo, que vocês destruam a cidade de Príamo e voltem bem para casa! Mas, por favor, libertem minha filha e aceitem estes resgates, em reverência a Apolo – o Deus que fere de longe!
Todos os outros Aqueus concordaram nisto: respeitar o sacerdote e aceitar os esplêndidos resgates. Mas não, ao Atrida Agamêmnon isso não agradou o coração, e rechaça Crises com maldade, dando-lhe uma ordem brutal:
“Velho, que eu não te veja perto dos nossos côncavos navios, nem agora, demorando-se, nem depois, retornando. Porque, aí sim, não vão te servir de nada o cetro e as insígnias do deus. A menina? Não vou libertá-la. Antes disso, a velhice vai pegá-la em nossa casa, em Argos, longe de sua terra, trabalhando no tear e se achegando em minha cama. Vai! Parte daqui e não me irrite, se quer sair são e salvo!
Assim falou. O velho teve medo e obedeceu à ordem. Seguiu em silêncio pela orla do multissonante mar. E quando já estava afastado, o ancião orou fervorosamente a Apolo, o soberano, que Leto de lindos cabelos gerou:
“Atende minhas preces, Arqueiro do Arco Prateado, que proteges Crisa e a divina Cila, que és o forte soberano de Tênedo, ó Esminteu! Se um dia eu já cobri teu lindo templo, se algum dia eu já queimei para ti coxas gordas de touros, ou de cabras, realiza-me este desejo: faz que com teus dardos os Dânaos paguem o meu pranto!”
Assim falou em sua prece, que o Luminoso Apolo atendeu. E desceu dos cimos do Olimpo enfurecido em seu coração, com a bem cerrada aljava nos ombros. Retiniam as setas nas costas do iracundo, enquanto ele se movia; e chegou, à semelhança da noite.
Sentou-se, então, afastado dos navios, e disparou uma flecha: foi terrível o estrondo do arco prateado (…)